Hermínio Corrêa de Miranda nasceu em 5 de janeiro de 1920, em Volta Redonda/RJ. Formou-se em ciências contábeis, tendo trabalhado na Companhia Siderúrgica Nacional até se aposentar.
Casou-se com Inez Chiarelli de Miranda. Tendo duas filhas e um filho: Ana Maria, Marta e Gilberto. Gostava de ler, especialmente história e filosofia. Além do português, lia inglês, francês e esperanto. Gostava de escrever, tendo publicado contos, crônicas e artigos de teor literário, filosófico e técnico. Autor de mais de 40 livros, dentre eles, diversos clássicos da literatura espírita, como Diálogo com as sombras, Diversidade dos carismas e Nossos filhos são espíritos.
Sua vasta produção literária inclui ainda obras que tratam do tempo, de regressão de memória, de autismo, de múltiplas personalidades, dos primórdios do cristianismo, todos assuntos que atiçaram sua inesgotável curiosidade.
Na pesquisa psíquica, além de autor de diversas obras foi ainda magnetizador. Dialogando por décadas com espíritos, as suas obras relatam vivências, fatos e fenômenos reais.
Realizou pesquisas sobre reencarnação de personalidades notórias na ciência e na história, como Giordano Bruno e Fénelon, entre outros. Investigou profundamente a mediunidade, a “paranormalidade”, deixando como legado um vasto material de estudo que revela, sobretudo, o seu exemplo inspirador para os estudiosos do presente e do futuro.
Desencarnou no Rio de Janeiro, em 8 de julho de 2013, aos 93 anos.
Fonte: Wikipedia: http://pt.m.wikipedia.org/wiki/Herm%C3%ADnio_C._Miranda
Revista Leitura Espírita : divulgando cultura e conceitos espíritas. Ed. 15, set-out de 2013.
Ana Maria Miranda, filha de Hermínio, narra emocionantes momentos dos seus últimos meses na Terra.
Despedida…
6 de janeiro de 2013 – 8:30 da manhã Caxambu, Minas Gerais
Acordei por volta das 8 e pouco e entrei na cozinha. O “velho escriba” tinha feito 93 anos na véspera – reunião simples de família, bolinho e as velinhas: 9 e 3.
Parabéns cantado duas vezes e ele abraçado à Inez. Fez seu desejo e soprou as velinhas. Não sei por quê, guardei as velinhas com muito carinho pela primeira vez na vida…
Ao entrar na cozinha, como disse acima, eu o vi com as duas mãos fechadas em concha como se segurasse um passarinho para não voar. “Que é isso, pai?”
“É uma formiga que estava se afogando na pia – abre a porta do quintal pra mim, por favor”. Abri. Lá foi ele – passinhos curtos, devagar, atenção toda voltada para as mãos. fiquei observando, emocionada… Hermínio Corrêa de Miranda, 93 anos e 1 dia, salvando uma formiguinha… que benção pensei entre emocionada e grata a Deus por conviver com uma criatura como ele. Ele era puro amor.
Voltou para a cozinha. “botei ela no canteiro, coitadinha”…
E eu ainda engasgada: “e aí pai, como se sente um ano mais velho?”
E ele pensativo: “muito velho, minha filha, cansado, dando muito trabalho para vocês” …
Quis desconversar…
E ele sério: “preciso te dizer que fiz 93 anos, mas não conte comigo fazendo 94”…
Engoli em seco e meus olhos marejaram: “que é isso, pai”…
“É preciso que você esteja preparada – vou precisar de você”… “você me tem, pai, inteira e eternamente”…
28 de junho de 2013. 6ª feira – 16:30 Botafogo, Rio de Janeiro (quase seis meses depois)
Cheguei em casa de meus pais depois de deixar meu trabalho para ajudar um pouco, porque minha mãe e irmã Marta estavam muito cansadas. Ele começara a dar trabalho à noite. Variava um pouco, falava coisas desconexas, repetia coisas já faladas, ia, voltava, errático. Elas não dormiam um sono tranquilo. Fizemos lanche e, depois de escovar os dentes levei ele pra cama, coloquei o pijama e o deitei. Ele me agradeceu muito. “Obrigado minha filha, muito obrigado por tudo”… (difícil era entender quando ele falava, principalmente deitado – segurou minhas duas mãos entre as suas e as beijou… E eu, engasgada…) “eu te amo pai, muito…”
Minutos depois, ele entrou como que num transe. Falava fluente e rapidamente numa língua desconhecida cujas palavras faziam lembrar árabe, hebraico, aramaico – eu não saberia distinguir, mas ele falava sem parar. Por vezes chorava, fazia gestos, botava as mãos no rosto, dizia “não”, afastava algo com as mãos, levantava os braços, empurrava algo que só ele via… Fiz de tudo para acalmá-lo.
Segurei suas mãos, afagava seu rosto e ele pegava minhas mãos e apertava e continuava sua conversa com alguém. Até que minha mãe se lembrou de dar água com açúcar para ele e eu dei. Pedi para ele se acalmar. Disse que eu ia “dar uns passes nele”. Pedi a Deus que me perdoasse e me ajudasse, porque nem sabia como dar passes. Orei, falei com Cristo, seu grande Amigo, pedi ajuda e “dei os passes”.
Parece que ele me ouviu – começou a se acalmar, virou de lado e dormiu até as 2:30 da manhã. Acordou, fui com ele até o banheiro, e ele me disse, como se nada tivesse acontecido: “minha filha, não precisava levantar”…lúcido! Deitei ele de novo e ele dormiu até o dia seguinte e levantou tranquilo..
Tomamos café e ele não se lembrava de nada, a não ser de que “estava dando muito trabalho…” Fiquei um pouco mais e depois fui para minha casa. Naquela semana ele piorou bastante, com variações mentais acontecendo mais intensas e a agitação, à noite.
6ª feira, dia 5 de julho de 2013 (exatamente 6 meses depois de seu aniversário.)
Mamãe e Marta estavam literalmente exaustas. Fui pra lá de novo direto do trabalho. Cheguei em casa e ele estava sentadinho na poltrona, segurando sua bengalinha, com o bonezinho da American Airlines dado pelo Paulo, um grande amigo da família, gola rolê, blusão acolchoado. Não estava frio, mas ele sentia muito frio. Me fez a maior festa, como sempre: “minha filha, que alegria te ver”…chorou. Se levantou, como cavalheiro que sempre foi, nos abraçamos e senti os ombros dele tão magrinhos, fragilizados, os ossos protuberantes… Sofri.. E engoli minhas lágrimas.
Daí, perguntei: “e aí pai, como vai?”
“Ah minha filha, não vou nada bem. Não estou satisfeito comigo mesmo”…
“Mas como? Pai, para com isso. Você é um homem vitorioso – deixou sua marca em tudo que fez. Fez a diferença em tantas coisas e lugares por onde passou, iluminou os caminhos de tanta gente, pregou a palavra de seu amigo, “o Cristo”, e ainda não está satisfeito?
Daí ele me olhou e disse normalmente: “pois é, é sobre isso que quero falar com você: quero saber se você está preparada para o que vem”…
“Mas, o que é que vem”? (me fiz de desentendida porque, há mais de uma semana, sentia que ele estava partindo…)
“Você vai ter que ter muita coragem, minha filha. Vai ter muitos aborrecimentos, muitas angústias, tristezas, desencantos, e muitos problemas. Mas preciso saber se você está preparada”.
Para acalmá-lo, disse que sim – podia contar comigo “INTEIRA E ETERNAMENTE”. Quis saber quanto mamãe ia receber de pensão e eu garanti que jamais iria faltar nada a ela porque ele tinha providenciado tudo. Ele se acalmou. Falou da vida difícil que ele e ela tiveram. Falou dos filhos “preciosos”; falou dos que o ajudaram, do respeito que tinha pelo José Roberto, marido de minha irmã, de sua cultura e amizade; do Odayr, meu marido que como dedicação o iniciara na informática, de suas noras Rosane e Fátima, dos netos… Dos amigos…
“Mas, voltado ao assunto, não fica nervosa – somente creia e, nos momentos de maior desespero, para e entrega tudo a Cristo. Estarei com você a cada instante. Vou te ajudar e te proteger”. Fiquei muda ao ver a transformação de uma quase alienação da semana anterior para uma normalidade que ele já não tinha.
Me disse que ia sentir muitas saudades de nós e chorou. “consegui construir tudo o que pude com a ajuda de sua mãe – ela foi meu eixo. Tenho uma família de que me orgulho. Fui um profissional correto e tentei, com os meios que me foram dados, transmitir a palavra do Cristo”. Ficou emocionado. Se acalmou e disse “preciso voltar para casa – preciso me libertar do meu corpo: já não posso mais andar independentemente, não escuto mais, se falo, as pessoas não me entendem e agora já não posso mais ler, nem escrever – que mais estou fazendo aqui? Preciso ir, tenho muitas coisas para fazer ainda…” (meus olhos fixos nos dele, meu batimento cardíaco, com certeza, a cento e muitos…)
“Para onde eu vou, há muitos amigos à minha espera, ansiosos. Eles vão cuidar de mim – fazer uma lanternagem, trocar o motor, fazer uns ajustes e pronto!” E sorriu no seu sempre bom humor. “vai ser uma festa quando eu chegar lá” … (achei estranho porque ele era um homem muito humilde). Se emocionou de novo… E eu também.
Baixei a cabeça, pensativa, e ele: “quero ser enterrado aqui, está bem”?
“Claro, papai, mas não quero falar sobre isso” …
“Mas vai acontecer e eu vou precisar que você esteja preparada para cuidar das minhas coisas – tenho plena confiança em você. Por favor, cuida principalmente da sua mãe. Cuida de tudo que levei a vida construindo para vocês quatro. Eu sei que você já tem demais minha filha, mas faz isso por mim.”
Levantei, abracei aquele anjo tão querido e desconversei de vez. Estava muito assustada, mas ainda com aquela velha ideia de que “ainda não era dessa vez”. Me enganei… Era.
“Vamos fazer lanche, pai?”
Fizemos lanche nós dois, na cozinha. Minha irmã e minha mãe, já deitadas e exaustas.
E ele “lanchando”: “e aquele jogo da Itália com a Espanha? Que coisa hein!… Como é que o goleiro italiano deixou passar aquela bola?”
“Coisas do futebol, pai – você sabe, um tem que ganhar”… “e a Dilma, que será que ela vai fazer do Brasil?”
“Nem sei, pai – que é que a gente pode fazer?” “pode não votar neles…”
“É vero!”
Tocamos em outras amenidades e ele conversava fluentemente, sorria, brilho no olhar, feliz…
Assim terminou aquela que seria nossa última refeição juntos: meu maior amigo e o que sobrava de mim naquele momento. Entendi…
Escovou os dentes, sentei ele na cama, tudo muito devagar – coloquei seu pijama e deitei ele com cuidado – tudo muito carinhosamente. Estranhei o fato de ele não se despedir da minha mãe, coisa que jamais deixara de fazer todas as noites. Ia até a cama dela, pegava suas mãos e as beijava, agradecia por tudo, pedia a Deus para protege-la e agradecia de novo com o mesmo amor de 71 anos atrás – um amor realmente eterno e recíproco.
Deitou e, de repente, o olhar dele me pareceu algo diferente, assustado e distante… Amarrava e desamarrava o cordão do pijama, incessantemente. Tentei acalmá-lo. Não conseguia. Coloquei sua cabeça amada no travesseiro e o cobri.
Pedi a minha irmã e minha mãe que não se levantassem durante a noite – eu cuidaria dele.
Estiquei o lençol, os cobertores, e ele virou de costas para minha mãe na outra cama. Fiquei observando, contente por ele estar tranquilo.
Enquanto arrumava minha cama no colchão, no chão do quarto deles, de repente, ele levantou meio corpo, levantou o braço direito e disse: “e o doce?…”
“Que é pai?”
“O doce”, repetiu ele.
“Mãe, será que ele quer comer doce?”
“Não” – disse ela – “ele quer que você me traga um doce, porque às vezes levanto com vontade de comer e vou até a cozinha.”
Fui até a cozinha e trouxe um pacotinho de suspiro, mostrei para ele e disse: “pai, olha, o doce”. Ele balançou a cabeça e deitou.
Foi para sua idolatrada Inez, seu último pensamento lúcido. Ela mereceu esta última prova, este último carinho, fruto do inconteste amor que os uniu.
Dez minutos depois, entrava em crise. Não conseguia respirar direito, mexia-se muito, os braços, as pernas, falava coisas sem sentido naquela língua que eu não entendia de novo, elevava os braços, afastava coisas que a gente não via, segurava a parede com os braços, como se ela fosse esmagá-lo, os olhos arregalados. Assustado, muito agitado. Respirando com muita dificuldade. Ficamos ele e eu acordados até o dia seguinte, quando ele já não conseguiu levantar nem comer mais. Na sua inquietação, num dado momento, levantou meio corpo e perguntou meio nervoso e irritado: “mas vou morrer aqui?” – e com o braço mostrou o quarto.
Foi internado na emergência do hospital. Ainda em casa, aplicaram nele Diazepam e ele se acalmou apenas um pouco – se acalmou, mas não fechou os olhos. Continuava mexendo os braços com uma força que eu sabia, ele não tinha mais…
Fiquei a imaginar por que perguntara se “ía morrer ali” (era o quarto de dormir do casal). Daí entendi: ele não queria que a Inez tivesse na lembrança a cena de ele morrendo, ao abrir e fechar os olhos, cada dia e cada noite, depois de sua partida…
Dia seguinte, fomos, mamãe, minha irmã e eu, ao hospital fazer a visita. Meu irmão Gilberto, que morava longe, não conseguiu chegar a tempo. Só podiam entrar dois de cada vez e Marta precisou sair para eu entrar. O médico conversou comigo e disse que o estado dele era gravíssimo. Na sua santa ingenuidade e amor, mamãe perguntou “quando é que ele vai para o quarto, doutor?” O médico sorriu sem jeito, carinhoso e disse: “não posso lhe garantir minha senhora – vamos esperar os remédios fazerem efeito – vamos ter que matar um leão por dia”.
Hora de ir embora. Falei com ele na UTI, baixinho, no ouvido em que ele ainda ouvia um pouco. Disse que se ele quisesse ir, que fosse em paz, porque cuidaríamos de tudo. Disse que a UTI estava cheia de amigos: – toda espiritualidade presente. Daí, criei coragem e disse: “pai, seu grande Amigo, o Cristo, está vigilante aqui, ao seu lado”, e ele mexeu as pálpebras, algo agitado. Tinha-me entendido. Os olhos marejados, o coração na garganta, segurando as mãos da minha mãe tão fragilizada, disse: “pai, temos que ir – mas eu só queria saber se você ouviu o que eu disse. Se ouviu, por favor, me dê um sinal”…
Ele virou a cabeça devagar para meu lado e no canto de seu olho esquerdo, vi uma lágrima. Disse a ele que nós o amávamos muito e pedi POR FAVOR que ele ficasse em paz… “eu te amo muito pai” …
Mamãe se despediu e, baixinho, pediu para ele “ficar bom logo, para voltar para casa, para eles fazerem o lanchinho juntos de novo” … E, na sua linda “mineirice”, acrescentou, como sempre o fizera: “já estou com saudades, bem”… “minha alma de repente se afastou de mim. Me senti “não”…
Pedi ao médico que colocasse outro cobertor nele, porque ele sentia muito frio. Foi colocado. Fomos embora. Nossos corações, sem destino.
Dia seguinte, voltamos à visita e quando chegamos à UTI, ele havia partido há meia hora…
Não consegui derramar uma lágrima. Minha dor era maior que qualquer reação física. Perdera meu eixo, meu maior amigo, a metade de mim…
De volta do enterro, dia cinza, chuva miúda, frio… Mamãe virou para mim e perguntou: “minha filha, quando eu morrer, onde vou ser enterrada?” E respondi: “aqui, mamãe, junto com papai.”
E ela: “mas, como”?
Eu disse: “você não viu o buraco enorme que fizeram e o caixão do papai ficou lá no fundo e colocaram uma laje de cimento em cima?”
“Vi…”
“Pois é, o seu caixão vai ficar logo em cima do caixão dele” …
(perdoem minha emoção ao escrever isso – é muito forte, mas ela me disse a seguir)
“Será que eu não podia ficar dentro do dele?”…
Recado para meu pai:
Pai, em “Nossos filhos são espíritos”, lembra de sua surpresa ao ver meus “olhinhos abertos e as ruguinhas na minha testa”, momentos depois que nasci e me colocaram no seu colo, “embrulhadinha”?
Pois é, era porque eu já queria rever você e mamãe nos meus primeiros minutos na Terra. As “ruguinhas” eram por conta da minha tristeza antecipada em 70 anos pelo momento que eu sabia, um dia viver, com a ausência de suas presenças físicas. Já era saudade…
Tá doendo muito, meu grande amigo. Obrigada por tudo. Te amei e te amo com paixão. Dizer que você foi “o melhor pai do mundo” seria usar uma frase tão… Pequena e tão repetida! Você merece uma coisa maior. Diria que você foi o pai mais parecido com o Pai, que eu conheci.
O consolo que encontro em meus momentos de quase desencanto com o resto de vida que ainda tenho pela frente, é que agora tenho dois pais no céu… Meu pai e MEU PAI.
A gente se vê, “velho escriba” – mesmo porque, e para usar uma frase tão repetida por você: “Dieu réunit ceux qui s’aiment”. E vai ser “aquela festa”, de novo…
É só uma questão de tempo, coisa que você nem conhece mais – agora você é eterno…
(Publicado originalmente na Revista Leitura Espírita, edição 15 – Setembro e Outubro 2013)