“Com efeito, Kardec mostra como o autoconhecimento é uma das premissas ao processo de busca pela perfeição moral, tendo Santo Agostinho deixado importantíssimas sugestões a respeito de como fazê-lo na questão 919 de O Livro dos Espíritos, (…)”
“Vencido o medo da morte e conseguindo dar início ao processo de domínio das paixões, o homem está pronto para dar outro e simultâneo passo em direção à sua salvação: conhecer a si mesmo.
Esta é uma tarefa e um projeto de vida que, longe de ter sido proposto originalmente pelo Espiritismo, já fazia parte da “cartilha” da sabedoria de grandes pensadores do passado, especialmente os gregos. Sócrates ficou famoso por ter consagrado a máxima “conhece-te a ti mesmo”, sendo esta uma das frases inscritas no pórtico do templo do deus grego Apolo, onde se localizava o Oráculo de Delfos. A mesma sabedoria encontramos ainda em Lao Tse: “Aquele que se conhece a si mesmo é verdadeiramente esclarecido”.
A Doutrina Espírita abraça a tarefa do conhecimento de si mesmo com grande entusiasmo, dando a este aspecto uma importância central no papel de evolução do Espírito. Com efeito, Kardec mostra como o autoconhecimento é uma das premissas ao processo de busca pela perfeição moral, tendo Santo Agostinho deixado importantíssimas sugestões a respeito de como fazê-lo na questão 919 de O Livro dos Espíritos, assim como o Espírito La Fontaine também o fez em mensagem publicada na Revista Espírita de junho de 1863.
Percebamos, no entanto, que para se conseguir desvendar a própria alma, questionar as próprias crenças, abandonar velhas ideias, rever convicções e assim despojar-se do “homem velho” através do processo de conhecimento de si mesmo são necessárias grandes doses de humildade, pois normalmente, como dizia Sponville, “conhecer-nos como somos é quase sempre nos decepcionarmos”.
Devemos conhecer a nós mesmos, portanto, não para catalogar defeitos, mas para avaliar e identificar aquilo em que podemos melhorar, e como podemos fazê-lo. Nenhum processo de autoconhecimento teria grande utilidade se não acreditássemos que podemos evoluir, que podemos, enfim, mudar a nossa natureza tornando-nos seres melhores, e não é outra a premissa espírita.
Conhecer a si mesmo não é tarefa fácil. São Luís, aliás, disse a propósito do Espiritismo que “as claridades intelectuais que ele traz a quem realmente quer conhecer-se a si mesmo e trabalhar em seu melhoramento são tais que amedrontam os pusilânimes, e é por isso que ele é rejeitado por tantas pessoas”. A dificuldade vem não só do fato da moral espírita ser inegavelmente amedrontadora por ser muito exigente, no sentido de fazer depender a salvação dos esforços do próprio indivíduo, e não mais de terceiros ou de alguma espécie de “graça divina”, mas decorre também de outro fator: em geral nós nos acostumamos a viver sem grandes dúvidas ou desconfianças quanto à nossa moralidade. Não raro achamo-nos muito bons, íntegros, verdadeiros homens de bem. Com frequência tomamos como certo o fato de que está tudo bem conosco em relação a isto, mas talvez nada na vida seja tão fácil quanto enganar a si próprio, daí o porquê de Salomão ter dito que “aquele que confia no seu coração é tolo”. Sem dúvida, confiar apenas em si próprio, em nossa razão, na própria consciência e em nossas intuições guarda riscos enormes, dado que a imensa maioria de nós, que se encontra encarnada no planeta Terra, é composta por Espíritos imperfeitos, a saber, Espíritos nos quais há a predominância da matéria sobre o espírito, que são propensos ao mal, nos quais a ignorância, o orgulho, o egoísmo e todas as paixões que lhes são consequentes ainda prevalecem. Sem a ajuda da reflexão sincera para vencer nossas imperfeições e paixões, feita sempre com o indispensável auxílio da prece, dos nossos anjos da guarda e pelos ensinamentos espíritas, corremos o risco de nos iludir com as armadilhas dos bons sentimentos. Costumamos achar que o ato de amar (quando na verdade nem sabemos ao certo o que significa esse termo) nos dispensa de pensar, de refletir, de ser inteligentes.
Logo, esta, definitivamente, não é uma tarefa que consiga ser feita por pessoas orgulhosas. Sócrates, para quem “a vida sem exame não é digna de ser vivida”, o demonstrou por meio de seus exemplos e com o da sua própria vida, tendo sido condenado à morte por meio da ingestão de cicuta. Jesus, que nos convidou a conhecer “a verdade que liberta”, também acabou enfrentando a cruz. A cada um de nós, portanto, resta carregar sua própria “cruz” e beber sua própria “cicuta”, que não são mais (nem poderiam ser) as mesmas de Jesus e Sócrates: nossa cruz e nossa cicuta são o orgulho que temos de expelir de nosso íntimo; a vaidade que devemos arrancar de nossa alma; o egoísmo que precisamos enterrar longe de nós. São, enfim, nossos vícios, que trarão dores ao nos deixar, mas estas serão as dores da abstinência dos vícios, aos quais por vezes somos tão apegados, mas que logo em seguida nos propiciarão entrar no gozo de novos prazeres e alegrias: as do homem de bem, virtuoso e caridoso.”
LIMA, Daniel Araújo. Sabedoria Espírita: Aprendendo a Viver Melhor com Allan Kardec. 3ª Parte “Salvação”, Capítulo 3.5 “Conhecimento de si mesmo”, página 226. Editora Nobilità. Brasil, 2015.